quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Ecos de Machado

Por Vinícius Dino, Clara Lima, Alissa Amoras e Daniela Dino
       O conto "Pai contra mãe", de Machado de Assis, que narra os impasses de um homem livre, porém marginal na sociedade carioca no Brasil do séc. XIX trata-se de um retrato extremamente bem feito da sociedade brasileira suas contradições em um determinado tempo histórico. Entretanto, a força extraordinária da narrativa já pode ser notada na primeira leitura e, mais do que seus simples ecos, a própria voz do conto encontra-se viva e pode ser ouvida claramente na atualidade: é um exemplo de historia universal cujo sentido não é esgotado pela ação do tempo e transcende as circunstâncias do Rio de Janeiro habitado mutuamente por Cândido Neves, homem empobrecido recém-casado, e Arminda, escrava fugida. Quando o primeiro, vendo-se obrigado pelas condições financeiras a entregar seu filho à adoção, se encontra encurralado, a segunda apresenta-se como possibilidade de redenção; a recompensa oferecida pelo dono da escrava é suficiente para sustentar a Cândido e sua família. 
     Tem-se nesse conflito o ponto central da história que oferece ao leitor várias interpretações, mas uma indagação sobressalente: alem dos "ofícios e aparelhos" descritos detalhadamente no início da narrativa, o que mais a escravidão levou consigo? Terá levado também os aspectos mais obscuros e intrínsecos à ordem social que a perpetuou por séculos? Mais do que o simples maniqueísmo, a separação dos personagens entre bem e mal, Machado nos oferece a realidade da escravidão em sua face mais cruel, dos castigos e da violência, da opressão escancarada e brutal que convive com privilégios, assim como ocorre hoje. Ele também, ao mesmo tempo, revela sua face mais sutil: a coisificação do homem promovida por um modo de viver e produzir que permite a um homem abstrair do outro sua condição humana. Dessa forma, a escrava Arminda, por ser fugida, transforma-se automaticamente em ferramenta para a obtenção de lucro por parte de Cândido Neves, que busca incessantemente a mercadoria em forma de gente que o trará conforto e sustento. Nem mesmo o fato de ela se mostrar vulnerável e frágil, por estar grávida, é suficiente para desencorajar Cândido de sua meta; ele provoca o aborto de Arminda sem culpa nenhuma, pois há algo que vale mais: o dinheiro. Quanto a isso, basta um desencargo de consciência: "nem todas as crianças vingam".
      Aí residem o eco e a voz de "Pai contra mãe" na atualidade. A escravidão pode ter levado consigo ofícios e aparelhos, recompensas e capitães do mato, mas sua lógica, a do dinheiro que tudo vale e tudo compra, persiste. E nela, como diria o hipócrita Brás Cubas, está contido o legado de nossa miséria.

sábado, 23 de julho de 2011

Reforma educacional, econômica ou social?

Por Daniela Dino        

          "Foram os piores anos da minha vida.” A frase ainda é dita com sofrimento pela estudante carioca Chanel de Andrade Rodrigues, de 18 anos. Ela está no 1o ano da faculdade de artes, mas não esquece o período em que estudou no Santo Agostinho, do Rio de Janeiro, um dos colégios mais tradicionais e bem-conceituados do país. Do 7o ano do ensino fundamental ao 1o ano do ensino médio, passou seus dias perdida entre aulas que não acompanhava, um enorme volume de conteúdos para memorizar, provas difíceis, notas baixas e um séquito de professores particulares a cada final de ano letivo. Na escola, não gostava de sair para o recreio e não comia nada. Em casa, compensava a ansiedade comendo demais. Na escola anterior, menos rígida, onde tirava boas notas, costumava nadar e fazer aulas de dança. No Santo Agostinho, evitava as aulas de educação física. Chanel entrou em depressão e engordou 20 quilos.

          A mãe tentou convencê-la a fazer terapia, mas ela se recusava. “Eu só queria ser invisível”, afirma. “Odiava a competitividade que estava sempre no ar.” Só depois que Chanel foi reprovada, no 1o ano, sua mãe decidiu trocá-la de escola. (Procurado por ÉPOCA, o Santo Agostinho não respondeu aos pedidos de entrevista.) O caso de Chanel é apenas um entre centenas que revelam uma realidade incômoda: o custo emocional alto – muitas vezes altíssimo – do modelo de eficiência adotado naquelas escolas que exigem alto desempenho dos alunos e garantem todo ano boas colocações nos melhores vestibulares.
        Consideradas as melhores do país, quase sempre campeãs nas provas nacionais de avaliação, as escolas de ensino tradicional representam, na mente de muitos pais, uma esperança de sucesso para a vida dos filhos num mercado de trabalho competitivo. Apesar de seus resultados inquestionáveis e da procura crescente por escolas desse tipo, esse modelo agora começa a ser mais e mais questionado por seus efeitos colaterais.

         O ensino tradicional surgiu na Europa do século XVIII como um modelo em que os alunos são ensinados e avaliados de forma padronizada. Ele se inspira na ideia de que a mente das crianças é uma tabula rasa, um espaço em branco sobre o qual os diversos conteúdos – gramática, matemática, ciências, história etc. – devem ser inscritos seguindo um método rigoroso de exposição e avaliação. Mais do que qualquer outra aptidão, valoriza o acúmulo de conhecimento: quanto mais fatos e fórmulas o aluno aprende, mais bem avaliado ele é.

       Há, ainda, uma forte pressão por desempenho nas provas e um grande volume de conteúdo a estudar. As escolas tradicionais também costumam ser mais rígidas em regras de comportamento, como respeito ao horário, freqüência às aulas, uso de uniforme e atitude no recreio. Apesar de ter incorporado conceitos pedagógicos mais modernos, a essência do modelo tradicional de ensino permanece a mesma – e a educação tradicional está em alta no mundo, com filas de espera para matrículas e salas abarrotadas de alunos.
       A grande procura por uma vaga numa dessas escolas se explica pelo desempenho acima da média de seus alunos. No Brasil, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que classifica as escolas públicas e particulares a partir das notas tiradas numa prova feita pelos alunos, é decisivo para a família na hora de escolher onde matricular seus filhos. Há anos, os colégios mais tradicionais e rígidos ocupam o topo da lista. “É comum hoje em dia pais e mães compararem as posições das instituições em que seus filhos estudam. Se os resultados das escolas não são bons, bate o sentimento de que se está fazendo algo errado”, afirma Quézia Bombonato, presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia."


           
           Compartilho acima um trecho de uma reportagem das jornalistas Martha Mendonça e Margarida Telles a fim de analisar o método padrão de ensino utilizado nas escolas do nosso país.
           Um rápido olhar sobre a realidade educacional brasileira é suficiente para constatar que o caso da menina Chanel Rodrigues não é exceção. O fato é que as escolas têm tornado o aprendizado cada vez mais mecânico e garantido o ingresso no mercado de trabalho como essência principal do ensino. No entanto, essa visão metódica do Ensino Médio gera uma competitividade cada vez maior e degradante entre os alunos, que vivem pressionados emocionalmente pelo modelo adotado (um desempenho descabido é exigido pelas escolas com o intuito de garantir suas colocações nos vestibulares mais concorridos do país). Assim, valorizando cada vez mais a necessidade de abastecer o sistema capitalista por meio da concorrência e da importância de se mostrar melhor que o outro, surge a disputa pela tão sonhada vaga nas Universidades Federais ou Estaduais, disputa essa  que não deveria existir.

            Os efeitos colaterais: depressão, anorexia, obesidade... É certo o que deveria ser visto como objetivo e direito do cidadão causar medo? O doentio é ter que se submeter a um sistema de avaliação tão injusto e pouco eficaz. O vestibular não mede o conhecimento por completo; visto que inclusive o nervosismo e a pressão colocada por si mesmo (e pela própria sociedade) dificultam a demonstração do aprendizado. Então qual o porquê do vestibular funcionar dessa forma? É hora de uma reforma educacional? É hora de se repensar se mais que qualquer outra aptidão, o acúmulo de conhecimento pode ser visto como índice ou padrão de qualificação? Mais importância deveria ser dada ao ensino das Ciências Sociais e a formação do indivíduo deveria ser voltada para a vida, e não para o mercado de trabalho, como prega o Sistema econômico em que vivemos. A sociedade precisa reavaliar o mundo para cuidar de si mesma; ou os efeitos colaterais serão ainda mais desproporcionais e depressivos. 
          Visto as possibilidades de tantos efeitos indesejáveis, abre-se uma questão para um patamar mais além: o sistema econômico baseado no modelo capitalista vive em função da sociedade, ou nós que vivemos em função do capital e organizamos nossos pensamentos de acordo com o que é pregado por esse sistema? É certo o estigma de que a competitividade garante vaga no mercado de trabalho? É certo viver em função da desigualdade e das diferentes oportunidades de ensino; da fome e da pobreza; da competitividade e do dinheiro?

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Darcy Ribeiro e a Nova Roma: o Brasil como utopia latina

Por Vinícius Dino

Compartiho nesse post um vídeo do antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro dando um breve depoimento que faz pensar sobre o Brasil que somos, e acima de tudo, o Brasil que queremos ser. Darcy fala com a propriedade e a lucidez de um visionário, alguém que escreveu e pensou o Brasil criticamente como poucos em nossa história fizeram, e também tem a autoridade de alguém que na vida política (na condição de parlamentar e ministro da Educação) e na vida acadêmica deu contribuições imensas à construção de um país verdadeiramente livre e independente. Esse país mestiço, essa "face morena", afirma ele, pode ser uma grande civilização que, mais do que potência econômica, é potência humana e carrega em si a essência de um povo que é grande em sua latinidade. Originados no Lácio, povos antigos saíram da Península Itálica para a Ibérica, e de lá para o mundo: eis aí as raízes do Brasil. Um Brasil que para realizar suas potencialidades, só precisa dar dignidade ao seu povo. Povo esse que, apesar de belo, é maltratado por aqueles que não enxergam que a riqueza do dinheiro, sendo efêmera e ilusória, se apequena quando comparada à riqueza das pessoas. Nesse sentido, cabe a indagação do início do post: que país queremos ser? O país das crianças com fome e dos 15 milhões de analfabetos? Ou um país soberano que caminha de cabeça erguida em direção ao futuro, falando com orgulho uma língua latina, que afinal é a sua? O sucesso da civilização brasileira e latino-americana, defende Darcy, depende apenas da realização de reformas realmente transformadoras, que alterando a estrutura da sociedade brasileira, são reforma e revolução ao mesmo tempo. As mesmas reformas interrompidas pelo golpe de 64, ocasião em que ele era ministro da Educação do Brasil, e dava à educação brasileira o mesmo norte dado à UnB, que foi idealizada para “montada no conhecimento, pensar o Brasil como problema”. (RIBEIRO, Darcy. Universidade para quê? Discurso pronunciado durante a cerimônia de posse do Reitor Cristóvam Buarque, em 16 de agosto de 1985). Dar escola a todos, terra para quem nela trabalha, acabar com a desigualdade, fazer da cidade e do campo ambientes justos e solidários: é o que precisa ser feito. Fazer as reformas agrária, tributária, política, eleitoral, educacional; e quantas outras mais forem necessárias. Nesse momento, pontua Darcy, "vai florescer no mundo uma civilização diferente, que nunca niguém viu". É essa a singela mensagem do primeiro reitor da UnB para o Brasil.

terça-feira, 12 de julho de 2011

A vida é uma quadrilha


Por Clara Lima




Carlos Drummond de Andrade faz, no poema "Quadrilha" (1954), uma ligação entre o moderno e o tradicional, a cultura e a vida cotidiana.

O título e o próprio poema só tomam significado a partir da forma do texto, que de maneira ritimada, se assemelha a dinâmica da tradicional dança, que no Brasil é parte fundamental das comemorações juninas. Dançada por jovens dispostos em casais, a quadrilha tem um caráter teatral e muito regional, que, mesmo nos ambientes mais urbanos, caracteriza-se como uma breve e estereotipada volta ao passado e ao campo, com seus caipiras com dentes pintados de pretos, e suas caipiras com tranças e vestidos cheios de retalhos, que dançam, pulam, cantam, formam enormes rodas e incesantemente trocam de pares.

No poema há, portanto, um elo entre o novo, que vai se distanciando cada vez mais das tradições, e o velho, já que, paradoxalmente, a vida moderna ainda é cheia de amarras conservadoras. Através das palavras de Drummond é possível ver a vida humana e seus dilemas como algo íntrinseco à própria cultura e história: os amores não correspondidos, a felicidade e a infelicidade, a sorte, o acaso e o destino, que são expressos no poema por meio de simples frases, fatos rápidos sem muito contexto, como passos de uma dança.

É interessante também estabelecer uma intertextualidade entre a "Quadrilha" de Drummond com a "Flor da Idade" de Chico Buarque. Na sua música, Chico enfoca ainda mais a temática da juventude, e usa da forma poética de Drummond em um trecho, ressaltando os primeiros amores e seus dramas volúveis e intensos, e os duelos temporais.

Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 1 de julho de 2011

O Estado se redime

    
Por Alissa Amoras


     O Diário Oficial da União, nesta quinta-feira (30/06), publicou a alteração da Lei de Execução Penal. Assinada pela presidente Dilma Rousseff e pelos Ministros da Educação, Fernando Haddad, e Justiça, José Eduardo Cardozo, a medida autoriza detentos que frequentam a escola a abater o tempo de estudo da pena a qual foi condenado, descontando um dia de pena para cada 12 horas de frequência escolar.
     Este ato vem contribuir sobre maneira para a ressocialização do indivíduo que cometeu delitos prejudiciais a sociedade e que é levado a pagar sua dívida em forma de reclusão em um ambiente completamente adverso à sua regeneração, estando exposto a convivência de todos os tipos de pessoas, aqueles que querem a reabilitação e os que pretendem voltar à criminalidade.
     O sistema penitenciário brasileiro deixou de lado sua principal finalidade reformadora e passou a ser mutiladora dos apenados. A detenção tornou-se um ambiente de reclusão onde os apenados ficam amontoados, sem nenhuma condição de dignidade, tratados de forma subumana. Esta situação não tira ninguém da marginalidade, pelo o contrário, só faz com que fiquem revoltados e voltem às ruas piores do que entraram. E o preconceito sofrido por ex-presidiários ainda é mais um empecilho para sua readaptação em sociedade. Se não tiverem condições para se reestruturar dentro da cadeia e não tiverem o apoio da sociedade quando saírem, certamente voltarão para a criminalidade.
      A falta de acesso a educação contribui para que os indivíduos entrem no mundo do crime. Imensas serão as oportunidades dadas aos presos que participarem deste projeto de educação. Projeto este que surge como pagamento de uma divida do Estado e forma de se redimir com essas pessoas que foram mal assistidas no início de suas vidas e como consequências entraram para essa vida.
     A partir de agora, quando terminarem de cumprir suas penas terão uma qualificação, o que facilitará sua inserção social, desde que as pessoas tomem consciência de que o apenado pagou sua divida com a sociedade. Essas pessoas que durante tanto tempo ficaram a margem da sociedade, finalmente terão a oportunidade de ter um futuro digno.

À margem da travessia


"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas ...
Que já têm a forma do nosso corpo ...
E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos
mesmos lugares ...

É o tempo da travessia ...
E se não ousarmos fazê-la ...
Teremos ficado ... para sempre ...
À margem de nós mesmos..."
Fernando pessoa

Por Daniela Dino
           O grande problema da sociedade consiste justamente na simples e rápida satisfação do indivíduo.  Banhadas pelo comodismo e sustentadas pelo pensamento de que nada está ao alcance de suas mãos, as pessoas tem relutado em se manifestar, em ir contra o que está errado e abusivo e, dessa forma, buscar as mudanças tão idealizadas em palavras. O que de fato tem acontecido? A sociedade tem mostrado um grande descontentamento com os resultados de políticos eleitos e da formação educacional social, porém, visto que vivemos em um âmbito de elite concentrada e privilegiada, os únicos com a chamada “capacidade de argumentação e discernimento” do que está certo ou errado são os favorecidos. Portanto, para eles, o argumento de indignação é suficiente, já que os mesmos não são e nunca serão afetados pela crescente desigualdade social. Já passou da hora da burguesia fajuta fazer a diferença. Sair das ideologias e ir às ruas. Se há uma verdadeira insatisfação popular, inclusive da elite que supostamente se incomoda, muitas vezes, com tamanha disparidade nacional, é preciso que as roupas usadas sejam abandonadas e que os caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares sejam esquecidos; os movimentos devem ser criados e organizados; para que então a travessia possa ser feita, de forma a não permanecermos na inércia de vivermos à margem de nós mesmos.

Meia-noite em Paris: o chamado de Woody Allen à criação

Por Vinícius Dino




Em seu último filme, o cineasta americano Woody Allen fala sobre o processo de criação e um paraíso criativo que habita o imaginário da maioria dos aspirantes a artistas: Paris na década de 20. Ao deixar a zona de conforto de sua Manhattan natal, onde filmou a grande maioria de seus filmes, Woody Allen nos transporta a Paris na pessoa dos personagens Gil (Owen Wilson) e Inez (Rachel McAdams). O primeiro, roteirista infeliz com sua vida monótona pautada pelas demandas da indústria de cinema em Hollywood, está escrevendo seu primeiro romance, e idealiza ao máximo uma Paris onde circulam seus heróis Ernest Hemingway, T.S. Eliot e F. Scott Fitzgerald, além de Pablo Picasso, Salvador Dalí, o cantor Cole Porter, e a também escritora, além de "mecenas" Gertrude Stein. Já a segunda, é uma jovem americana típica, fútil e que não dá valor às ambições artísticas do seu futuro marido, se ocupando mais com as compras durante a viagem, enquanto o noivo faz verdadeiras peregrinações a espaços históricos parisienses. Sua mentalidade e a de seus pais é o que dá espaço às já usuais críticas bem-humoradas do cineasta ao american way of life. O pai da personagem, por exemplo, é um magnata pertencente à ala direita do Partido Republicano (quase um nazista!). Em um de seus passeios solitários por Paris, quando o relógio dá meia-noite, passa um carro que convida Gil a entrar. Nesse momento ele é transportado no tempo, e conhece pessoalmente todos os grandes artistas que reverencia, passando a frequentar festas e ambientes da vanguarda dos anos 20. Em uma dessas festas, conhece Adriana, interpretada por Marion Cotillard, que apesar de namorar diversos artistas e participar intensamente da vida que Gil idealiza, considera tudo aquilo comum, não se identifica com sua época, e sonha com a era de 30 anos antes: a Paris da Belle Époque, da efervescência cosmopolita de uma França onde viviam Van Gogh, Degas, Gauguin, Lautrec, e os impressionistas, e todos se encontravam em cabarés como o Moulin Rouge, não em bares normais da Era do Jazz, conforme designação de Scott Fitzgerald para os anos 20. Esse impasse é o que estimula a grande problematização que pode ser feita a partir do filme: e nós, cidadãos do séc. XXI, quanto temos de Adriana e Gil? A época considerada extraordinária por Gil não o era pra Adriana, enquanto provavelmente para alguma outra pessoa da época de Monet, Caravaggio fosse o grande artista. Sujeitos históricos que somos, não podemos viver sem olhar para trás e conhecer nossa trajetória. Porém, ao rejeitar nossa própria época, quanto de vida e arte não podemos estar perdendo? A consideração cabe perfeitamente em um tempo em que predomina a negação da arte, e há a tentativa de desconstruir seu significado por parte de algumas pessoas, que amparadas no discurso de uma suposta pós-modernidade criativa, decretam o fim do fenômeno artístico. Na mesma medida, os anos 60 são apontados como o último grande período de efervescência cultural e intelectual, a última grande reviravolta no processo de criação. Desde então, a humanidade parece estar em um estado de suspensão e inércia, à espera de algum elemento sobrenatural de avant-garde disposto a introduzir uma nova revolução estética. Woody Allen mostra, acima de tudo, que a arte é feita por seres humanos, e não está livre de suas idiossincrasias e imperfeições. Entretanto, cabe somente a nós recuperar a importância da criação a fim de encontrarmos nosso lugar no mundo, assim como um dia os modernistas conferiram com sua arte algum significado àquela confusa Europa do período entreguerras. Do contrário, ficaremos como Adriana, que no filme tem a oportunidade de voltar no tempo até a Belle Époque, e escolhe ficar pra sempre lá, escolha incompreensível por parte de Gil, que apesar de idolatrar os escritores da Geração Perdida (denominação de Gertrude Stein), prefere voltar à sua vida em 2010 (ano do filme).